Mas dá pra ler em menos tempo.

sábado, 7 de setembro de 2019

O Cachorro

O sol batia nos olhos, enquanto a gente montava aquela cabana no meio do mato, pensando que tudo estaria muito bem encaminhado assim que a gente conseguisse fixar de pé aquele pedaço de madeira que seria a parede do Clube.
Fazia um calor desgraçado, de uns 38 graus, mas você sabe como são as crianças. Só se importam com o clima quando começa a chover e alguma mãe interrompe a brincadeira. Mas não ia chover aquele dia, não senhor. Nem uma gota capitão, naquele dia ensolarado e seco de janeiro.
Eu, o Binho e o César, trabalhamos como condenados desde o começo da manhã. Havia a esperança de terminarmos nossa “Casa Quase na Árvore” antes de escurecer para aproveitar o resto do feriado lá dentro, jogando super trunfo – o de carros potentes -, comendo Sucrilhos sem leite e talvez até compartilhando algum devaneio sobre a garota dos nossos sonhos.
Chamávamos de “Casa Quase na Árvore” porque ela só era encostada em uma árvore. Não havia a menor possibilidade de construirmos uma casa da árvore tradicional porque éramos crianças medrosas e também um pouco incapazes. Mas isso não fazia diferença. Quando a casa estivesse pronta e fechada por todos os lados, seria impenetrável por adultos, crianças menores – que chamávamos de piolhos – e por qualquer tarefa doméstica, igualzinha uma Casa na Árvore de verdade.
Lembro de estar apoiado com o cotovelo, na parede lateral, que já estava fixa na terra, assistindo o César enfiar a outra chapa de madeira dentro do buraco que cavamos, quando ouvi os passos do Crono sobre o gramado. Ele era silencioso demais e por isso não dei muita importância a principio.
Ouvi barulho de estalos, dos pequenos galhos que ele quebrava pelo caminho e virei a cabeça em sua direção, despreocupadamente.
O Cesar e o Binho estavam muito concentrados no trabalho e não notaram absolutamente nada.
- Fica parada, madeira dos infernos! – César falou. Estava empurrando a chapa com toda a força para dentro da terra fofa, vermelho como um tomate cereja. Mas a madeira estava bamba e não dava sinais de que iria parar no lugar. Binho não falava nada, mas dava pra ver que estava cansado e muito irritado com aquele fracasso.
- Vocês estão escutando esse barulho? – perguntei.
Eles nem me deram atenção, continuaram se esforçando inutilmente, naquela tarefa que nunca seria completada.
Crono era o cachorro do meu vizinho, que ficava preso 24h por dia. Uma mistura de pastor belga, com sei lá o quê, gigantesco, que era do mal. Ele nunca se aproximava das pessoas latindo e rosnando. Ah não. Mesmo quando elas se aproximavam da cerca dele, ele vinha em silencio, com o focinho quase encostando no chão e os olhos sagazes, como os predadores, que caçam para sobreviver.
Uma vez um piolho colocou a mão para dentro da cerca dele, para fazer carinho ou sei lá, e só não ficou sem os dedos porque meu pai, que passava por perto, arrancou o menino pela camiseta bem na hora do bote. Quando o Crono percebia que tinha perdido a oportunidade de comer carne fresca é que começava a latir, rosnar e babar. À noite você o ouvia roendo a cerca de ferro, mastigando com força, sangrando as gengivas até cansar. Meu pai vivia me avisando para ficar longe dele.
Por algum motivo, que nunca ficou claro até hoje, o Crono escapou da sua cerca, naquele maldito dia. E em vez de sair em liberdade para conhecer o mundo e nunca mais voltar, ele decidiu caçar. Caçar crianças.
Quando percebi que o mato preto que se movimentava lentamente por trás das árvores era na verdade o cachorro assassino, um arrepio subiu pelas minhas costas. Senti minhas pernas tremerem e tentei gritar. Nada saiu da minha boca, além de um gemido fraco e apavorado.
Isso bastou para o Binho desviar o olhar para mim e em seguida para o cachorro preto, que se aproximava lentamente, com orelhas alertas e olhos escuros.
O que aconteceu depois foi na velocidade de um sonho. Rápido, implacável e surreal. O animal pulou pra cima de mim como um relâmpago. Protegi meu rosto com as mãos e senti sua boca se fechar sobre o meu braço, como uma armadilha de urso. Seus dentes rasgaram fundo minha carne fraca e pálida. A dor foi alucinante, aguda como um milhão de facas cegas perfurando o músculo.
Caí para trás, com o cachorro em meu peito e senti a pressão da mordida aliviar rapidamente. Ele agora vinha morder meu rosto, sabendo que era a parte mais valiosa. Tudo se passou muito rápido. Senti seu hálito quente, cheio de tártaro, vindo como o bote de uma cobra. Era o fim. Mas uma pancada muito forte o acertou na cabeça. Ele pulou para longe de mim, sem demonstrar nenhum sinal de medo ou fraqueza.
Olhei primeiro para o meu braço, que era uma esponja vermelha e brilhante. Havia fendas escuras e profundas por todos os lados e o sangue pulsava com urgência. Em seguida olhei para Cesar, de pé ao meu lado, que segurava um galho velho nas mãos e estava mais pálido que a réplica de David de Michelangelo.
Por último olhei para Crono que já se recompunha do golpe e mostrava os dentes cerrados. Foi o que bastou para que eu rolasse de lado e levantasse num pulo, com alguma dificuldade. Meu coração batia como um tambor de guerra e eu sabia que era questão de tempo até minha pressão cair e eu desmaiar ali mesmo. Sentia as lágrimas de desespero descendo pelo meu rosto, enquanto meu braço pegava fogo.
- Cachorro desgraçado! – Binho gritou. – Vai embora daqui seu cachorro desgraçado! – continuou enquanto começou a atirar pedras do tamanho de bolas de tênis.
O cachorro se desviou com facilidade das duas primeiras, mas a terceira acertou sua pata. Não significou nada. O olho preto de Crono parecia louco e não sentia medo. Armou o segundo bote. Sabia que eu era o mais vulnerável, a presa ferida, e não escondeu suas intenções. Senti meus joelhos fraquejarem, o pavor encheu meu estomago com chumbo quente e choraminguei por socorro em voz alta.
De repente ouvi um barulho estupidamente alto, como a explosão de uma bombinha M-50, proibida por lei, e Crono sumiu da minha frente. Eu e meus dois amigos gritamos apavorados, de medo e surpresa, e vimos meu pai, bem perto de nós, com sua espingarda de cano serrado, e a fumaça subindo maliciosamente.
Crono foi atingido em cheio pelo tiro múltiplo da arma, arremessado por um metro e meio no gramado. Seu pêlo agora estava ainda mais escuro, com sangue negro espalhado por toda parte e seu olho esquerdo era uma orbita vazia.
Para o espanto geral, o cachorro se levantou, e o som que fez, com a boca em pedaços e a gargante furada, gelou todos nós, dos pés a cabeça. Uma nova explosão aconteceu e Crono tombou, em pedaços. Contorceu-se silenciosamente por quase vinte segundos antes de dar adeus à vida.
Meu pai me puxou pelo braço – o braço bom – com uma força inacreditável. Estava com um olhar febril, louco como o cachorro. Gritou pela minha mãe que já se aproximava por causa do barulho. Por um momento pensei que ela fosse desmaiar quando me viu. Ficou pálida e trêmula, mas me levou para dentro de casa e começou a tratar o horror que era meu braço.
Seu Constantino, dono do Crono, um sujeito cretino, também nunca descobriu o motivo do cachorro ter fugido da cerca, mas era em parte responsável pelo comportamento demoníaco do animal. Levou um susto quando meu pai invadiu sua casa. Ficou gritando “Saia daqui, saia daqui agora seu caipira de merda”, até levar o primeiro soco. Levou o segundo e o terceiro. Foi surrado até perder os sentidos. Foi por isso que meu pai passou aquele tempo na cadeia e tudo. Ele não se orgulha disso, veja bem. Mas o seu Constantino não guardou mágoas.
Até hoje, nas noites de Halloween eu sonho com o Crono, o cachorro monstro. Preto como a própria meia noite, segurando meu braço decepado entre os dentes, como uma coxa de galinha. As orbitas dos seus olhos estão sempre vazias e de sua garganta sai o som de risada humana, gelada e profunda.
Tá louco. 🎃

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