Mas dá pra ler em menos tempo.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Loteria

O homem já passava de seus cinquenta anos. Cinquenta duros anos de trabalho árduo, às vezes sob o sol risonho e cruel. As marcas fundas no rosto e os calos nas mãos eram sombras de todo o esforço e do calor. Em seu cabelo, os fios negros perdiam a batalha. A camisa aberta até o meio do peito, na tentativa vã de se refrescar. O suor escorria em suas costas e nos lados do corpo.

Sentado no banco do ônibus, segurava com carinho seu bilhete de loteria. Alisava-o e chegava a sorrir para ele. Era seu bilhete da sorte. Tinha que ser. Uma persistência tão grande havia de ser recompensada. Por Deus ou pelo diabo.

Ao seu lado o rapaz ouvia jazz. Parecia distraído e olhava pela janela. Não importava. O que importava era o dinheiro. Era aquele pedaço de papel que lhe traria seu merecido descanso.

E de repente, aconteceu. Ele estava rico. Ele estava rico! Rico! Os 26 milhões de reais eram seus. Parecia inacreditável. As lágrimas enchiam seus olhos e quem o via se alegrava com ele.

Rapidamente vieram os carros. Carros que ele sempre admirou, agora eram dele. Não conseguia ver as marcas, e mal distinguia as cores. Mas todos velozes e confortáveis. Nunca mais ia se espremer num ônibus, maldito seja. O ar condicionado ia permanecer sempre ligado.

Lá estava ele, numa casa enorme. Os móveis, aqueles que ele via nas novelas. Não se lembrava de te-los comprado, mas como eram belos. Mais que belos, eram perfeitos. E a piscina! Ah a piscina! Que vida era essa? Que maravilhosa vida era essa?

E também havia as mulheres. Loiras, ruivas e morenas.. "mas espera..." ele pensa. "eu não era casado?". Ah sim, lá estava ela, sua esposa. Estava presente também, no meio da multidão de amigos. Uma multidão de rostos conhecidos, e ao mesmo tempo desconhecidos. E tinha mais alguém.

Quem era?

Era o rapaz. O rapaz do jazz. Estava o observando.

"Sai daqui, moleque intrometido" ele quis dizer. Mas as palavras não saíram.

Então ele sentiu o que mais temia. Era aquela mesma fome, aquele desejo, aquele buraco. "Buraco desgraçado" ele pensou "não é possível".

Se viu em seu carro novo, com ar condicionado, indo almoçar no lugar que queria. E se divertiu. Achou sensacional. E quando voltou para casa, mesmo envolto daquelas paredes magnificas, voltou a sentir aquele troço. Aquele troço inexplicável. Aquilo o esmagava "Eu sou rico, seu filho da mãe" disse pra si mesmo. Mas não bastou. Foi se afundando em seu desespero. Viu diante de si tudo o que sempre desejou. Ao alcance da mão. E pegou. Ele o pegou, Santo Deus! Mas não era isso que ele realmente desejava.

Gritou.

E o viu novamente.

O rapaz. O garoto do jazz. "maldito garoto, o que você quer?" ele pensou. E como que em resposta o rapaz se aproximou ainda mais e o tocou no ombro.

- Senhor, meu ponto é o próximo.

O homem arfou e entrou em outra realidade. Na única que havia. Olhou o garoto nos olhos. E foi atingido pela gravidade do ocorrido. Deu espaço para passagem. Organizou as ideias.

Percebeu que segurava com firmeza seu bilhete de loteria. Amassava-o entre os dedos. Deu-lhe um longo olhar. Suspirou. Enfiou o papel no bolso e ignorou o mal estar.

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