Era uma vez um rapaz. Esse rapaz sou eu, Jorge. Muito prazer. E esse rapaz, que sou eu, não se esqueça, sofria de um mal peculiar. Ele gastava horas do seu dia com pequenos atos de inutilidade. Fazia cruzadinhas, assistia filmes em canal aberto e, embora não gostasse de admitir, podia passar horas jogando Super Nintendo, isso no alto dos seus 22 anos. Mas este não era o mal peculiar citado.
Jorge tinha todo esse tempo livre, toda essa liberdade, que jogava no lixo, sistematicamente, dia após dia, e quando se aproximava da hora de ir dormir, a hora em que seria sensato ir dormir, era golpeado por uma vontade violenta de escrever. Um lance de lobisomem e a lua cheia, só que não tão emocionante.
“Porcaria de ideia dos infernos!” ele gritava. Era agressivo esse menino. “Já estou de pijamas” falava para si mesmo. Mas era um truque. Aquelas roupas velhas que ele usava pra dormir não poderiam ser chamadas de pijamas. “Amanhã tenho que acordar cedo” também pensava. Mas não adiantava. Nada adiantava nesse momento de agonia.
Certa vez ele tentou se enfiar embaixo dos cobertores antes que fosse tarde demais. Experimentar aquela sensação de ser abraçado por Deus em seus lençóis e travesseiro. “Nossa, que maravilha” disse sorrindo “Não vou sair daqui nem a pau”.
Até que as frases começaram a se formar na cabeça dele, como uma teia de aranha simples e filha da mãe. Os olhos abertos, correndo pelo teto, como duas bolinhas de gude sincronizadas num ritmo muito louco. Um paranoico. O travesseiro foi ficando quente e incômodo, a vista se adaptando à escuridão e ele teve que se levantar e pegar seu caderno, com seu osso roído e o rabo entre as pernas, como o cão arrependido do Chaves.
E era todo dia este martírio. Mas, mesmo assim, não era este o mal peculiar que iniciou o texto, não senhor. O problema deste pobre infeliz, deste escritor de boteco, deste contador de histórias policiais sem sirenes e balas de borracha, era que ele sabia que aquilo não o levaria a nada. Ele queria escrever, queria inventar um monte de histórias infernais, fazer as pessoas rirem ou dizerem coisas como “que loucura cara”. Mas ele não era bom o bastante.
Lia suas histórias para o pai e para dois amigos íntimos e eles adoravam. Diziam que era bom ouvir aqueles textos todos e que ele devia pensar seriamente em escrever um livro. Diziam sempre, às vezes da boca pra fora, até que ele começou a pensar seriamente mesmo. Começou a imaginar como seria entrar em uma livraria e encontrar um livro seu entre as prateleiras, mesmo que nas mais distantes e escondidas, aquelas que ficam onde a luz quase não bate, perto de alguma série de oito livros infanto-juvenis, com capas mal desenhadas.
“Santo Deus, que perda de tempo” disse ele, ao terminar o segundo capítulo do livro. “Eu devia estar dormindo agora, neste exato momento. Não escrevendo esta porcaria, este rascunho amaldiçoado”. Só que isso não o fez parar. Nem o fez ir dormir, como deveria.
Durante uns mil anos ele repetiu seu ritual diário de escrever em seu caderno. Escrevia até sua mão dar sinais de câimbra, até seus diálogos ficarem tediosos ou até ser completamente varrido pelo sono. Lia e relia cada parágrafo e refazia o que achava que precisava ser refeito.
Um dia chegou ao fim. Finalizou seu livro. Sua obra de arte. O começo do fim de sua vida.
Entregou para seu pai e seus amigos, que leram e gostaram muito. Estava muito animado. Gastava todo o tempo livre que tinha pensando sobre isso. Tentando gerenciar expectativas inutilmente. Queria combater seu otimismo, sua ansiedade, mas essa é uma luta cruel. Cheia de derrotas e suor frio nas mãos.
Ligou em todas as editoras que conhecia e até conheceu algumas das quais nunca tinha ouvido falar. Fez umas quinze copias do seu querido manuscrito e enviou para todos os cantos da cidade. Esperou. Durante 6 meses aguardou ansiosamente qualquer ligação, qualquer carta. Durante 6 longos meses não teve sequer uma leve vontade de escrever sobre qualquer outra coisa. Foram 6 meses em uma cena de filme onde não há trilha sonora, só expectativa.
E não conseguiu. Não conseguiu publicar seu livro. Foi rejeitado por cada editora. Cada uma delas entregou seu selo de reprovação, por cartas ou pelo silencio feroz.
Olhou mais uma vez para seu manuscrito. Olhou pela última vez. Escrito com tanto empenho. Amado. Tantas noites com aqueles personagens. Tantas conversas compartilhadas, sonhos pela metade. Sentiu um aperto muito forte no estomago.
Pensou também em todas as histórias engasgadas. Que ficariam presas para sempre em sua cabeça. “Por que trazer ao mundo filhos condenados? ” foi o que pensou.
Guardou seu caderno e seu estojo e foi fazer faculdade de administração.
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