Durante nossa infância, corremos o risco de enfrentar as
situações mais bizarras da vida. Isso porque temos uma mente rústica, com pouca
capacidade de processar adequadamente acontecimentos anormais e, ao mesmo
tempo, convivemos com outras crianças, que podem apresentar comportamentos
anormais com frequência.
Eu lembro de uma vez em que estava brincando de
esconde-esconde no térreo do meu prédio. A gente adorava brincar daquilo e acho
que até hoje não negaria uma rodada de esconde-esconde a ninguém.
Na ocasião eu não era o pegador e estava me escondendo numa
área do jardim. Já estava escuro, o clima era de suspense total. E tinha esse
garoto, o Lêmure, que tinha ganhado esse apelido dos garotos mais velhos, por
causa dos seus olhos esbugalhados e, enfim, cara de lêmure. Se você não sabe o
que é um lêmure, não tema. Procure no Google. É aquele bicho do filme “Madagascar”,
que canta e dança “I like to move it”. Mas na época nem tinha nada de Madagascar. O
garoto que inventou o apelido é que era fanático por Animal Planet ou qualquer
coisa assim.
Lêmure era mais novo que a gente, devia ter seus sete anos,
e morria de medo de se esconder sozinho. Então, toda rodada ele grudava em um
de nós e avacalhava todo o esconderijo.
Nessa ocasião, no entanto, rolou algo um pouco diferente.
Estávamos agachados no jardim, como mencionei antes, perto de uma parede. Eu
estava completamente concentrado, olhando para o local onde o pegador poderia
aparecer.
Depois de uns três minutos escondido, fui ajeitar meus
joelhos e percebi que a terra do jardim tinha virado uma espécie de lama.
Xinguei baixinho, ninguém em especial, e fui atingido por um cheiro muito forte
e ruim.
A princípio não identifiquei o que era. Meus olhos foram
vasculhando a área em volta até perceber que o líquido, que tinha misturado com
a terra embaixo de mim, escorria da parede, que, em último lugar, escorria do
meu próprio colega Lêmure.
- QUE QUE VC TA FAZENDO AÍ, LÊMURE, SEU IMBECIL?
Ele, que já tinha finalizado seu serviço e estava levantando
as calças, olhou assustado para mim.
- Ué, tive que fazer xixi! Me deu muita vontade de fazer! -
sussurrou, na maior cara de pau. Como se a vontade de fazer xixi não estivesse
presente toda hora em uma rodada de esconde-esconde.
Mas é como eu disse antes, eu não tinha capacidade de
processar aquilo adequadamente. Foi nessa hora que o Thiago, o pegador, nos viu
escondidos e gritou nossos nomes e saiu correndo para realizar o tradicional
"1,2,3 fulano pego!".
Isso fez com que eu me esquecesse, momentaneamente, da minha
calça encharcada de urina alheia e nós dois corremos loucamente até o local do
"piques". Quando chegamos, arfando, vimos que éramos os últimos.
- Lêmure, você foi o último! – gritou o Thiago, com um
sorriso meio maldoso no rosto - Tá com você!
Juro por Deus que cheguei a ficar aliviado de não ter sido o
último. Isso com a calça ensopada. Essa, senhoras e senhores, é a capacidade de
abstração de uma criança. Mas o Lêmure, como sempre, ficou pirado. O que
acontece é que geralmente a gente tentava pegar ele por último pra infernizar a
vida do pobre garoto.
- DE NOVO EU?! – gritou de volta, muito indignado. – Vocês
tão roubando! Eu acabei de contar! – E era verdade. Não a parte de estarmos
roubando, mas é como eu disse, a gente se esforçava pra ele ser o pegador
sempre que possível.
E aí que o troço começou a ir ladeira a baixo
- Tudo bem – ele falou – mas eu preciso te falar uma coisa
antes.
O Thiago não entendeu muito bem, mas se aproximou. Nisso, o
maldito do Lêmure, passou rapidamente a mão na cara dele. Dá pra acreditar? E,
como deu pra notar, tanto pela reação do Thiago, quanto pelo reflexo do liquido
sob a luz das lâmpadas do local, a mão do Lêmure estava muito molhada.
Os 90 segundos que se seguiram acabaram me marcando de um
jeito esquisito. Enquanto o Thiago passava a mão na boca, com uma cara de
confusão absoluta e perguntava repetidamente “O QUE É ISSO LÊMURE?!”, o próprio
Lêmure entrou em uma crise de riso sádico, com os olhos bem abertos e as mãos
na barriga. Ficava engasgando com a própria risada.
Às vezes a vida é isso aí. Alguém ri enquanto você torce
para que o liquido que passaram na sua cara seja apenas água.
- É xixi. – falei, olhando para o nada. Estava horrorizado
com aquela cena. Principalmente com o garoto rindo alucinado.
O rosto do Thiago ficou completamente transtornado. Por um
momento ele demonstrou ser apenas uma criança assustada e confusa, a beira do
vômito. Mas logo se recompôs com a sede de vingança típica de um garoto de doze
anos.
- Pega ele. – falou para os outros garotos que assistiam. E
foi o que eles fizeram. Seguraram um de cada lado o esqueleto magro do menino. O
sorriso do Lêmure desapareceu como uma vela soprada e foi substituído por uma
cara de pânico que poucas vezes tive o desprazer de presenciar em toda a minha
vida. Na mesma hora fui atingido por uma sensação terrível.
- O que você vai fazer? – perguntei, sentindo meu coração
galopando como um cavalo possuído. Mas o Thiago nem me ouviu. Estava cego de
raiva. Os dentes rangendo.
- Lêmure, seu idiota, agora você vai ver só. – disse e
começou a desabotoar sua bermuda jeans. Isso me deu ainda mais calafrios. O
Lêmure começou a chorar desesperado, pedindo desculpas pelo que tinha feito,
mas vocês sabem como são as crianças. Eu não queria olhar aquilo e ao mesmo
tempo não conseguia não olhar. Era como naqueles pesadelos.
Mas então o zelador
surgiu, como um verdadeiro guardião da Justiça e da Misericórdia divina. E
perguntou o que diabos estava acontecendo ali. O Thiago, que não era
inexperiente nem nada, rapidamente forçou um sorriso, passou o braço por cima dos ombros do
Lêmure, que ainda chorava e disse:
- A gente estava só brincando com ele.
E foi isso. Cada um voltou para sua casa, o Lêmure escapou
daquela vez. Mas, para sempre, aquela frase paradoxal ficou gravada na minha
memória. Uma mistura perversa de crueldade e sorriso. "A gente estava só
brincando com ele".
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