- É um absurdo isso que você tá querendo. - ele falou.
Era muito safado aquele cara.
- Como "um absurdo"? A gente combinou que a banda
receberia o valor total no final do show!
- Valor total de quê? Não apareceu um único infeliz pra
ouvir vocês!
- Uma infelicidade, de fato. Te garanto que é mais duro para
nós do que pra você. Mas isso não muda nada. O pagamento não estava relacionado
à bilheteria. - falei. E ele sabia disso. Tanto que não insistiu. Fez uma
careta infernal, como se eu estivesse sacaneando ele. Acho triste isso. De as
pessoas ficarem chateadas comigo. E elas quase sempre fazem isso.
- Vocês são péssimos - falou, enquanto adicionava algumas
poucas notas de cem reais na pilha. - Nunca mais vão voltar aqui. – prometeu.
Um voto arriscado, eu diria. Nenhuma banda quer tocar nas segundas à noite. É
um mercado e tanto para perdedores como nós.
Recolhi o dinheiro e caminhei devagar até a porta do bar. Estava
um frio miserável na rua. Um bom dia para morrer de velhice. Puxa, como eu
estava deprimido! Aquilo sempre mexia comigo. Aquilo tudo. Tanto o fato de ter
que ficar negociando com gerentes insatisfeitos, quanto ter que ouvir que
éramos péssimos. Porque, pra ser franco, acho que o único que era péssimo mesmo,
na nossa banda, era eu. E, cara - que ironia cruel da vida - eu era o que mais
dava o sangue por aquela porcaria toda.
E não era questão de errar algumas notas. Eu me perdia no
tempo da música e, não poucas vezes, esquecia a cifra inteira. Um branco total.
Era injusto, sim senhor. Eu amava tocar. Não faltava a um ensaio e praticava em
casa por horas e horas. Adorava aquela sensação de estar num palco, tocando para
uma plateia, mesmo que o palco tivesse apenas 45 centímetros de altura, e a
plateia fosse composta por um bando de vagabundos.
É verdade que nosso vocalista não era nenhum Adam Levine.
Cantava como um cara qualquer e era feio pra burro. Isso acaba comprometendo
bastante o alcance da banda, vocês sabem. Mas não tem porque negar: quem
arruinava tudo era eu. E acho que eles só me mantinham no negócio porque eu
corria como louco atrás de lugares que nos aceitassem, tomava todas as botinadas dos gerentes e, afinal, era “apenas”
o segundo guitarrista.
O melhor show que nós fizemos foi em um lugar qualquer, um
pub chamado La Señorita, cujo nome decorei apenas porque o Fred, baterista,
ficou chamando assim todas as garotas do lugar. E digo que foi o melhor show
com muita dor no coração, porque o que aconteceu foi que, quando chegamos lá, o
pub só tinha um amplificador para guitarra e eu acabei não tocando.
De qualquer maneira, estava para sair do bar e enfrentar
aquela “pseudo-nevasca” que assolava a rua quando fui surpreendido por uma
garota:
- Ô guitarrista! – ela chamou. Estava numa mesa do canto,
sentada numa espécie de sofá. Havia 3 copos à vista, o que deu a entender que
ela não estava sozinha.
Confesso que gostei de ser chamado de guitarrista. Era isso
mesmo que eu era. Apesar de ser um dos piores da raça. Fui até ela.
- Pois não? – perguntei. Ela riu. Acho que não esperava essa
saudação de garçom. Mas é a única que eu tenho.
- Pois não nada. Senta aí rapidinho. – Sentei. A moça era
bonita à beça, provavelmente se chamava Laura. Eu não tinha nada a perder.
- Que foi? – perguntei. Sou muito bom de papo, reconheço.
- Há quanto tempo vocês tocam juntos?
- Hm.. faz exatamente dois anos e dois meses. Estamos
pegando o jeito, eu diria. Acertando nosso repertório... – larguei essas frases
genéricas porque estava nervoso pra burro.
- Posso te fazer uma pergunta sincera? – disse. E você sabe
que nada de bom pode vir depois disso.
- Além dessa daí? – perguntei. Santo Deus! Eu conseguia ser
pior socialmente do que era no palco.
Ela fez a gentileza de sorrir.
- Sim.
- Faça. Que mal pode haver? – respondi. Ingênuo.
- Por que você faz isso? – perguntou.
- Isso o que? Tocar? Ué, eu gosto. Gosto muito. – falei.
Lendo parece que foi uma resposta descontraída, natural, mas na verdade eu
provavelmente exibia minha cara de presa assustada. Na defensiva.
- Mas você não é bom. – completou. Falou exatamente isso. À
queima roupa. E que porrada, senhoras e senhores. Cheguei a perder o fôlego.
Isso pode colocar um jovem na lona em questão de segundos.
Tentei, desesperadamente, encontrar um traço de maldade na
entonação dela. Nos lábios. Nos olhos. Algo que pudesse justificar um abandono
imediato daquele diálogo amaldiçoado. Mas não encontrei nada. Nem uma única
pontinha de mau-caratismo. Era uma pergunta sincera, de fato, e até embrulhada em
certo respeito e humildade.
A princípio não soube o que dizer. E depois de alguns segundos
continuei não sabendo. Mas joguei na mesma moeda.
- Não sou mesmo. – admiti. Coisa que não fazia nunca. Não
pude suportar o olhar da moça. Fitei a mesa, desarmado. Completamente entregue.
Ela poderia emendar em um monte de afirmações, conselhos bem embasados e
arrasar com o resto de boa autoestima que eu cultivava. Mas não foi isso que
ela fez. Ficou em silêncio me observando. Talvez esperando que eu criasse
coragem para olha-la novamente. Porque logo que eu consegui fazer isso ela
continuou:
- Não é o fim do mundo. – falou e sorriu gentilmente. E se
fosse uma garota normal, coisa que estava completamente fora de cogitação,
teria dito para eu continuar praticando, que um dia ia dar tudo certo. Mas não
falou nada disso. – Acho que você devia parar. Você está perdendo tempo. E está
sofrendo a toa.
Santa honestidade Batman. Era mais do que eu podia suportar.
Não pude conter um sorriso sem graça, e, oh céus, como eu gostaria de tê-lo
contido. Percebi que os amigos dela estavam voltando sei lá de onde e
aproveitei a deixa. Desejei uma boa noite e tomei o caminho de casa.
Foi duro, reconheço. Uma verdadeira bomba. E não vou dizer que
saí da banda logo na manhã seguinte. Mas vou dizer o que precisa ser dito: a
gente precisa ser mais como ela.
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