Mas dá pra ler em menos tempo.

sábado, 7 de setembro de 2019

Vô - Luto


No chão de um banheiro apertado, enquanto a cidade dorme em silêncio, estou eu, aqui, rasgado ao meio.

Escrevo, pois é o que preciso fazer pra desentupir as minhas veias, desse sofrimento terrível, desse veneno mortal. Escrevo em homenagem a ele, em solidariedade aos meus parentes amados e em resposta a todos os meus amigos que me procuraram para oferecer consolo e não foram atendidos da maneira que mereciam.

Meu avô querido se foi. Faleceu hoje por conta de uma pneumonia. E a dor da saudade me ataca agora, sem piedade, em plena madrugada. Seu rosto estampado nas minhas pálpebras fechadas, sorrindo. Filho da mãe, como um velho pode ser tão bem humorado?

Meu ar se vai e meus olhos ardem. Os pensamentos não estão em memórias marcantes, nem em uma conversa profunda, e sim num sentimento abstrato, tenebroso e feroz."Meu avô querido!" é o que repito e o que me faz engasgar. Não ações, não conquistas, mas uma presença amorosa, fiel e constante, que não me acompanhará mais.

Durante a cerimônia do meu casamento, há três meses atrás, ele veio até mim, em lágrimas, com voz distorcida e me disse "estou tão feliz!". Ah vovô querido! Que bom foi poder chorar com você naquele momento! Poder demonstrar o quão grande é o meu amor pelo senhor, de uma maneira sincera! Como eu gostaria de chorar mais um pouco contigo agora, como choramos aquela vez!

Que grande espetáculo é a morte! Tão traiçoeira quanto se pode ser! Violenta, cruel, fria e nada natural! Nem um pouco natural, santo Deus! Como é que alguém pode dizer que a morte é natural? Natural é espirrar! É almoçar! A morte é uma intrusa. Uma aberração, isso sim.

E graças a Deus por Jesus, que veio morrer e ressuscitar, pra que a vida seja eterna, os relacionamentos eternos, como devem ser e como nosso coração espera que sejam.

Estou divagando.

Parentes queridos, que essa fatalidade sirva para que o nosso amor seja fortalecido. Que possamos nos amar ainda mais e agora. Vocês são pessoas preciosas que Deus colocou na minha vida e com quem sempre compartilhei grandes momentos. Que isso seja aprofundado.

Amigos queridos, que possamos sempre colocar a morte no radar, para que nossos conflitos se tornem banais, que nossas prioridades sejam reavaliadas e que nossas homenagens sejam constantes e sinceras.

Deus, o Senhor continua sendo bom, fiel e companheiro. Eu peço que não nos deixe no poço do sofrimento por muito tempo. Mas também que não nos tire antes de aprendermos o que precisamos aprender com essa situação.

Um brinde a você, vovô.. Um brinde a você! Que saudade!

Pai - Homenagem

Quando eu penso no meu pai eu também penso em futebol. E eu sei que isso pode soar superficial, já que quase todo mundo tem um pai fanático, que fala muito sobre o time do coração e vai nos estádios o tempo todo. Mas não é isso o que eu quero dizer.

Quando eu tinha uns dois anos de idade e nem sabia distinguir sonho de realidade, ele começou a jogar bola comigo, pra valer. Gastava um tempão tentando me ensinar a dominar a bola, dar passes e tudo. Lembro que eu queria só chutar no gol, mas ele não permitia isso. Todas as vezes fazia um treino completo. Ele queria que eu fosse canhoto e, pela insistência, hoje eu sou destro só de mão.

Aos 6 anos ele me colocou em uma escolinha de futebol e todas as segundas feiras estava lá para me assistir jogar. É engraçado isso, porque, apesar de ser uma turma de umas vinte crianças, só um pai aparecia para assistir os treinos. É verdade que ele tinha horários flexíveis, haha, mas não era só isso.

Todas as segundas, durante 6 longos anos, lá estava ele, de terno e gravata, presente.

Ele gostava de aplaudir minhas boas jogadas e me cornetar quando eu não tocava a bola para os companheiros de time. Haha. Eu sentia uma vergonha danada daquilo, apesar de no fundo valorizar o apoio, e, aos poucos, os gestos foram ficando mais discretos e aceitáveis. Em todos os gols ele esteve lá e nas derrotas também. Sempre com elogios para levantar meu ânimo abalado e conselhos pós jogo, talvez muito sábios para minha pequena capacidade de compreensão mirim.

Seria natural que num cenário desses eu me sentisse pressionado a tentar entrar em times, disputar quaisquer campeonatos que aparecessem na minha frente e fazer valer todo o "investimento" que ele colocou em mim. Mas nunca houve nada disso. "Jogar futebol nos ajuda a fazer muitos amigos" ele dizia (e ainda diz!). "É uma das melhores coisas que existe".

Com o passar do anos, ele e eu começamos a jogar juntos, tanto em quadras de prédios, quanto em turmas de futebol semanais. Perdemos e ganhamos. Várias e várias e várias vezes. Discutimos bastante, fizemos tabelas e gols.

Por muitos e muitos anos este foi um dos maiores privilégios que tive na vida e serei para sempre grato por essa paixão que posso levar comigo aonde vou.

Hoje eu uso este pequeno (mas grandioso!) ângulo do nosso relacionamento para homenagear seu amor, dedicação e sabedoria como pai. Digo que sinto saudades e que tenho muito orgulho das suas habilidades futebolísticas e paternas! Agradeço a Deus por sua vida e por todo o exemplo que sempre deu.

É verdade que o futebol nos ajuda a fazer amigos, mas muito mais do que isso, ele me permitiu desenvolver uma amizade, que não pode ser explicada nem medida, com você, meu pai. E isso é um troço que não dá pra entender muito bem.

Te amo, e que venham muitas partidas ainda, pq jogar futebol é muito bom, mas jogar com você é muito melhor!

Feliz dia dos pais!

No Corredor

- Você conversou com ela ou não conversou?

- Conversei mais ou menos.

- Como assim mais ou menos?

- É que, tipo, eu falei o meu nome, disse que tava no primeiro ano, mas aí chegou um outro cara e se meteu na conversa.

- Que outro cara?

- Sei lá que outro cara. Um carequinha, da turma dela. Começou a falar de um trabalho que eles tinham que ajustar com URGÊNCIA. Eu não prestei muita atenção porque o cara tava com um bafo dos infernos. Juro pra você. Eu até tentei ficar ali por mais tempo, mas era um cheiro obsceno. Ela ficou toda preocupada com o trabalho e meio que perdeu o clima do negócio.

- Tá. – ele falou. Esfregou os olhos com a mão. Parecia que eu tinha deixado ele exausto com o meu papo. – é o seguinte cara: ela não é qualquer menina que você vai encontrar aqui não. Não, senhor. Tem um montão de abutre em cima dela.

- Eu sei.

- Não sei se você sabe, não. Já faz uns dois meses que você tá enrolando. Ontem veio aquele fortinho do judô e convidou ela pra almoçar e tudo. Falou que ela tava cheirosa.

- E o que ela falou? Ela foi almoçar com ele?

- Foi coisa nenhuma. Aquele cara é um babaca.

- É verdade. Um babaca mesmo. – respondi, feliz.

- Você tá perdendo o foco. Essa menina é o ouro puro. Qualquer dia vai chegar um cara decente aí na parada e você vai ficar me enchendo o saco todo o santo dia, choramingando que nem um minion doente, falando que ama ela e que perdeu a mulher da sua vida.

Senti uma pontada de dor. A mão invisível do medo se fechando no meu estomago com os seus dedos de fogo. E bem nessa hora ela apareceu, vindo do corredor da sala de informática, com aqueles cabelos curtos e brilhantes, o rosto sério, de quem está pensando em qualquer coisa importante e eu senti o meu esqueleto vibrar que nem um sino de igreja.

Só que ela percebeu que eu estava ali, conversando com o meu primo, e abriu um sorriso galáctico, que quase me jogou pra fora do prédio.

- Desculpa. Deu um problema com um trabalho que já tava pronto e eu acabei ficando um pouco nervosa. Mas tá tudo certo, o professor que se confundiu.

- Sei. – respondi. Na maior frieza. Mas só porque eu estava completamente gelado.

-Tu queria falar comigo? – perguntou. Dava pra ver que ela não estava totalmente segura na situação.

- É. Queria. – falei. Eu tava tremendo como um filho da mãe. E o Victor só ficou ali observando a cena, também meio nervoso, igualzinho o segundo homem do esquadrão anti-bombas. Fiquei em silencio um tempo, o que causou algum constrangimento nos dois.

- Pode falar. – ela disse, um pouco aflita.

- Eu estou perdidamente apaixonado por você. – falei.

- Puxa vida – o Victor falou, suspirando. – você é retardado.

Ela ficou me olhando, com a boca meio aberta, os olhos esbugalhados, sem respirar.

Meus batimentos cardíacos foram para níveis alarmantes e também não respirei naqueles dez segundos de puro apocalipse relacional. E aí completei dizendo:

- Era só isso que eu queria te dizer.

Ela continuou em estado de choque por mais uns segundos. Parecia que todo o prédio estava em choque. Um silêncio absoluto e alto.

- Entendi. – respondeu finalmente. Acho que ficou esperando pra ver se eu iria complementar, de alguma forma, aquele pensamento muito louco. Quando viu que nada mais sairia da minha boca, virou-se e foi embora.

Eu e o Victor observamos ela se afastar. Olhei pra ele e vi aquela cara de surpresa inconformada, como no final da primeira temporada de Game of Thrones. Ficamos em silencio por um momento. Então ele falou, apavorado:

- Não dá pra acreditar nisso. Ela gostou, cara. Ela gostou.

E eu respondi.

- Deus seja louvado.

O Trem

Acordei com o solavanco do trem. Percebi o pescoço dolorido e abri os olhos com dificuldade. Senti o frio penetrar nos ossos. O vagão estava escuro e deserto, e lá fora a neve caía pesada.
Nevava tanto que meu primeiro pensamento foi “vai dar merda”. Os olhos foram se ajustando à paisagem, a testa encostada no vidro. Ajustei o cobertor no colo, enquanto percebia uma pequena corrente de ar, vinda de uma fresta na janela, impossível de fechar.
Era noite. Tentei me lembrar de para onde estava indo e a principio não consegui. Fui tomado de pânico, como se estivesse perdido. Mas não era nada disso. Não me apressei em lembrar. Deixei-me levar por essa dúvida a ponto de sentir paz. Mas a paz era inconstante. Os sentimentos perderam a coerência. Misturaram-se, repetiram-se.
Senti no bolso, moedas e o papel amassado do bilhete. Forcei a vista para enxergar alguma palavra naquela escuridão, mas não foi tão difícil assim. Li o destino do trem e suspirei. Olhei a neve e pensei: ainda falta muito.
Por um momento me senti a pessoa mais solitária do mundo. Acordado em alta madrugada, num trem fantasma, gelado de bancos duros.
Foi quando ouvi passos no corredor e vi a claridade entrando por debaixo da porta fechada do vagão. Pensei em levantar e ver quem era, mas logo ouvi três batidas “toc, toc, toc”. Antes que pudesse responder, a porta se abriu de repente. A luz do fogo invadiu o ambiente e o calor, bem vindo, me encheu de esperanças.
Era um senhorzinho, de uns setenta e poucos anos, com um bigode grosso e branco, o chapéu vermelho escuro, combinando com o uniforme. Seus olhos eram azuis, profundos. Tinha um sorriso amigável, e um relógio de bolso, preso numa dessas correntinhas banhadas a ouro, sabe?
- Imaginei que você estivesse acordado. – ele falou. – esse é um trecho complicado do caminho.
Meus olhos passavam daquele sorriso, para o fogo, e do fogo para o sorriso. Voltei a olhar pela janela e tudo estava preto. Não conseguia enxergar mais nada.
- Você sabe me dizer quanto tempo falta, para chegarmos? – perguntei. Estava sentindo uma angustia danada.
Ele manteve o sorriso habitual, mas havia seriedade em sua voz quando respondeu:
- Só Deus sabe.
Agradeci com a cabeça e logo perguntei se havia algum meio de fechar aquela pequena fresta na janela, que estava gelando o vagão inteiro. Ele ficou sério por um momento, pediu desculpas e respondeu que era completamente impossível.
Agradeci novamente e puxei o cobertor até o queixo. Senti um cheiro conhecido, um aroma forte, que me deu saudades de casa. Percebi que ele me estendia uma caneca de café. E enquanto eu bebia o primeiro gole, sentindo meu corpo recobrar um pouco de vida e alegria, o senhorzinho plantou suas palavras de consolo no fundo da minha alma:
- Esta pode ser sua primeira viagem, filho, mas não é a nossa. Nós fazemos isso o tempo todo.
Desejou-me boa noite, encostou a porta e se afastou com seu lampião. Suspirei. Quis pedir a ele que se sentasse e me fizesse um pouco de companhia, mas era tarde. Larguei a caneca no apoio, afugentei os pensamentos inconvenientes e peguei no sono, para sonhar sonhos turbulentos.

O Cachorro

O sol batia nos olhos, enquanto a gente montava aquela cabana no meio do mato, pensando que tudo estaria muito bem encaminhado assim que a gente conseguisse fixar de pé aquele pedaço de madeira que seria a parede do Clube.
Fazia um calor desgraçado, de uns 38 graus, mas você sabe como são as crianças. Só se importam com o clima quando começa a chover e alguma mãe interrompe a brincadeira. Mas não ia chover aquele dia, não senhor. Nem uma gota capitão, naquele dia ensolarado e seco de janeiro.
Eu, o Binho e o César, trabalhamos como condenados desde o começo da manhã. Havia a esperança de terminarmos nossa “Casa Quase na Árvore” antes de escurecer para aproveitar o resto do feriado lá dentro, jogando super trunfo – o de carros potentes -, comendo Sucrilhos sem leite e talvez até compartilhando algum devaneio sobre a garota dos nossos sonhos.
Chamávamos de “Casa Quase na Árvore” porque ela só era encostada em uma árvore. Não havia a menor possibilidade de construirmos uma casa da árvore tradicional porque éramos crianças medrosas e também um pouco incapazes. Mas isso não fazia diferença. Quando a casa estivesse pronta e fechada por todos os lados, seria impenetrável por adultos, crianças menores – que chamávamos de piolhos – e por qualquer tarefa doméstica, igualzinha uma Casa na Árvore de verdade.
Lembro de estar apoiado com o cotovelo, na parede lateral, que já estava fixa na terra, assistindo o César enfiar a outra chapa de madeira dentro do buraco que cavamos, quando ouvi os passos do Crono sobre o gramado. Ele era silencioso demais e por isso não dei muita importância a principio.
Ouvi barulho de estalos, dos pequenos galhos que ele quebrava pelo caminho e virei a cabeça em sua direção, despreocupadamente.
O Cesar e o Binho estavam muito concentrados no trabalho e não notaram absolutamente nada.
- Fica parada, madeira dos infernos! – César falou. Estava empurrando a chapa com toda a força para dentro da terra fofa, vermelho como um tomate cereja. Mas a madeira estava bamba e não dava sinais de que iria parar no lugar. Binho não falava nada, mas dava pra ver que estava cansado e muito irritado com aquele fracasso.
- Vocês estão escutando esse barulho? – perguntei.
Eles nem me deram atenção, continuaram se esforçando inutilmente, naquela tarefa que nunca seria completada.
Crono era o cachorro do meu vizinho, que ficava preso 24h por dia. Uma mistura de pastor belga, com sei lá o quê, gigantesco, que era do mal. Ele nunca se aproximava das pessoas latindo e rosnando. Ah não. Mesmo quando elas se aproximavam da cerca dele, ele vinha em silencio, com o focinho quase encostando no chão e os olhos sagazes, como os predadores, que caçam para sobreviver.
Uma vez um piolho colocou a mão para dentro da cerca dele, para fazer carinho ou sei lá, e só não ficou sem os dedos porque meu pai, que passava por perto, arrancou o menino pela camiseta bem na hora do bote. Quando o Crono percebia que tinha perdido a oportunidade de comer carne fresca é que começava a latir, rosnar e babar. À noite você o ouvia roendo a cerca de ferro, mastigando com força, sangrando as gengivas até cansar. Meu pai vivia me avisando para ficar longe dele.
Por algum motivo, que nunca ficou claro até hoje, o Crono escapou da sua cerca, naquele maldito dia. E em vez de sair em liberdade para conhecer o mundo e nunca mais voltar, ele decidiu caçar. Caçar crianças.
Quando percebi que o mato preto que se movimentava lentamente por trás das árvores era na verdade o cachorro assassino, um arrepio subiu pelas minhas costas. Senti minhas pernas tremerem e tentei gritar. Nada saiu da minha boca, além de um gemido fraco e apavorado.
Isso bastou para o Binho desviar o olhar para mim e em seguida para o cachorro preto, que se aproximava lentamente, com orelhas alertas e olhos escuros.
O que aconteceu depois foi na velocidade de um sonho. Rápido, implacável e surreal. O animal pulou pra cima de mim como um relâmpago. Protegi meu rosto com as mãos e senti sua boca se fechar sobre o meu braço, como uma armadilha de urso. Seus dentes rasgaram fundo minha carne fraca e pálida. A dor foi alucinante, aguda como um milhão de facas cegas perfurando o músculo.
Caí para trás, com o cachorro em meu peito e senti a pressão da mordida aliviar rapidamente. Ele agora vinha morder meu rosto, sabendo que era a parte mais valiosa. Tudo se passou muito rápido. Senti seu hálito quente, cheio de tártaro, vindo como o bote de uma cobra. Era o fim. Mas uma pancada muito forte o acertou na cabeça. Ele pulou para longe de mim, sem demonstrar nenhum sinal de medo ou fraqueza.
Olhei primeiro para o meu braço, que era uma esponja vermelha e brilhante. Havia fendas escuras e profundas por todos os lados e o sangue pulsava com urgência. Em seguida olhei para Cesar, de pé ao meu lado, que segurava um galho velho nas mãos e estava mais pálido que a réplica de David de Michelangelo.
Por último olhei para Crono que já se recompunha do golpe e mostrava os dentes cerrados. Foi o que bastou para que eu rolasse de lado e levantasse num pulo, com alguma dificuldade. Meu coração batia como um tambor de guerra e eu sabia que era questão de tempo até minha pressão cair e eu desmaiar ali mesmo. Sentia as lágrimas de desespero descendo pelo meu rosto, enquanto meu braço pegava fogo.
- Cachorro desgraçado! – Binho gritou. – Vai embora daqui seu cachorro desgraçado! – continuou enquanto começou a atirar pedras do tamanho de bolas de tênis.
O cachorro se desviou com facilidade das duas primeiras, mas a terceira acertou sua pata. Não significou nada. O olho preto de Crono parecia louco e não sentia medo. Armou o segundo bote. Sabia que eu era o mais vulnerável, a presa ferida, e não escondeu suas intenções. Senti meus joelhos fraquejarem, o pavor encheu meu estomago com chumbo quente e choraminguei por socorro em voz alta.
De repente ouvi um barulho estupidamente alto, como a explosão de uma bombinha M-50, proibida por lei, e Crono sumiu da minha frente. Eu e meus dois amigos gritamos apavorados, de medo e surpresa, e vimos meu pai, bem perto de nós, com sua espingarda de cano serrado, e a fumaça subindo maliciosamente.
Crono foi atingido em cheio pelo tiro múltiplo da arma, arremessado por um metro e meio no gramado. Seu pêlo agora estava ainda mais escuro, com sangue negro espalhado por toda parte e seu olho esquerdo era uma orbita vazia.
Para o espanto geral, o cachorro se levantou, e o som que fez, com a boca em pedaços e a gargante furada, gelou todos nós, dos pés a cabeça. Uma nova explosão aconteceu e Crono tombou, em pedaços. Contorceu-se silenciosamente por quase vinte segundos antes de dar adeus à vida.
Meu pai me puxou pelo braço – o braço bom – com uma força inacreditável. Estava com um olhar febril, louco como o cachorro. Gritou pela minha mãe que já se aproximava por causa do barulho. Por um momento pensei que ela fosse desmaiar quando me viu. Ficou pálida e trêmula, mas me levou para dentro de casa e começou a tratar o horror que era meu braço.
Seu Constantino, dono do Crono, um sujeito cretino, também nunca descobriu o motivo do cachorro ter fugido da cerca, mas era em parte responsável pelo comportamento demoníaco do animal. Levou um susto quando meu pai invadiu sua casa. Ficou gritando “Saia daqui, saia daqui agora seu caipira de merda”, até levar o primeiro soco. Levou o segundo e o terceiro. Foi surrado até perder os sentidos. Foi por isso que meu pai passou aquele tempo na cadeia e tudo. Ele não se orgulha disso, veja bem. Mas o seu Constantino não guardou mágoas.
Até hoje, nas noites de Halloween eu sonho com o Crono, o cachorro monstro. Preto como a própria meia noite, segurando meu braço decepado entre os dentes, como uma coxa de galinha. As orbitas dos seus olhos estão sempre vazias e de sua garganta sai o som de risada humana, gelada e profunda.
Tá louco. 🎃

quarta-feira, 15 de julho de 2015

O Quartinho

Pode parecer mentira isso que eu vou contar agora. Mas acredite, não tem mentira nenhuma dessa vez. É uma história real, de puro terror.

Aconteceu quando eu tinha uns doze anos. Estávamos eu e meu grande amigo Alex em meu antigo apartamento. Ele ia dormir lá em casa e a gente estava de férias e tudo. Na época, o único computador da casa ficava no conhecido “quartinho da empregada”.

Hoje em dia, falar “quartinho da empregada” soa mal pra burro. Por isso eu botei as aspas. Pra ver se alivia um pouco.  Mas era esse nome aí mesmo. Ninguém dormia lá, então a gente chamava só de “quartinho”. Não sei se isso é muito importante pra história.

Em todo caso, o quartinho ficava escondido no apartamento. O único acesso era pela área de serviço, depois da cozinha. Às onze horas da noite minha mãe e minha irmã foram dormir e eu e o Alex estávamos lá, mexendo no computador. Era quarta-feira e meu pai tinha plantão no hospital.
Tomados pela euforia e liberdade das férias, nos deixamos levar noite adentro. E aí que o troço começou a ficar assustador.

Para deixar ainda mais claro, a cena era a seguinte: dois garotos de doze anos, num quartinho mal iluminado, cuja única porta dava para uma área de serviço em completa escuridão. Imaginem isso.
Lá pelas duas horas da manhã, ouvimos um barulho no apartamento. Meu sangue gelou na hora. Nos olhamos. O barulho era como se alguém tivesse esbarrado em alguma coisa, que caiu no chão. Na mesma hora pensei “alguém entrou no apartamento”.

- Que barulho foi esse? – o Alex perguntou, paralisado.

- Mano. Não. Tenho. Ideia. – respondi.   

Não sei quanto tempo se passou após esse primeiro susto. Imagino que não tenha sido muito, porque eu estava segurando a respiração. Um minuto. Dois. Três, talvez. Até que novamente ouvimos aquele som aterrorizante. Fechamos a porta, rapidamente.

- Santo Deus. Tem alguém no apartamento. – falei. Ou algo bem parecido. Faz muito tempo para eu lembrar exatamente as falas oficiais do evento. Relevem.

- Não pode ser. Será que não é sua mãe? – perguntou. Mas dava pra ver que ele não acreditava nem um pouco nisso. Ignorei.

Mais uma vez o barulho. Senti o suor se formando nas minhas mãos e no meu pescoço.
- Mano, será que é um ladrão? – perguntei. E acho que essa pergunta fez com que o clima de medo se transformasse em pânico mudo.

Ficamos um tempo em silêncio. O coração batendo de forma doentia. Não ouvimos mais nada. Abrimos a porta, coisa que não se deve fazer nunca numa situação dessas. E a situação piorou bem.
O que aconteceu foi que resolvemos mandar a Atena, minha poodle, em missão de reconhecimento. Na época ela chamava Lili, estou sempre mudando o nome dela, mas não acho que isso seja tanta sacanagem se comparado com essa história de mandarmos ela naquela missão de reconhecimento.

Atena (Lili) começou a caminhar pela área de serviço. MAS CAMINHAVA LENTAMENTE. Apreensiva! Isso fez o restante dos pelos da minha nuca se arrepiarem. Não avançou mais do que uns 4 passos. Quer dizer, é difícil calcular os passos dos quadrúpedes. Devem ter sido uns 16 passos. MAS, MUITO CURTOS. E aí que a coisa foi para o vinagre. Uma figura de 1 metro e 80 se materializou perto da porta da cozinha, com as roupas em trapos, cara de lunático e uma faca na mão.
 
Não aconteceu isso não. Santo Deus, acho que eu morreria ali mesmo. Seria o meu leito de morte. Mas não pense que o que aconteceu foi muito mais leve do que isso. Ah, não senhor! Atena parou de se mover. Eu e o Alex prendemos novamente a respiração esperando alguma reação do pobre animal, parado há um metro e meio de nós. E ela começou a rosnar, senhoras e senhores. Nossa senhora. Rosnar.

Foi até onde meus nervos puderam aguentar. Chamei Atena de volta, fechei a porta e fui sentar no chão, encostado na parede, em estado de choque.

Alguns pensamentos passaram pela minha cabeça. Os piores. Quis ligar para o telefone da minha mãe (havia outra linha no quartinho), para avisá-la do invasor, mas fiquei com um medo terrível de que isso fosse a causa de desastres maiores. O melhor cenário seria se o cara levasse tudo o que quisesse sem que ninguém interferisse.

Ouvimos outro barulho daqueles. Era um filho da mãe desastrado. Por um instante visualizei meu coração abrindo caminho pela minha garganta, com uma maleta e um chapéu, dizendo “Vou dar o fora, rapazes. Isso é loucura”.

- Não vou sair daqui. – Falei. Acho que falei mais pra mim mesmo do que para o Alex. – Não vou sair daqui até amanhecer.

E isso não estava aberto para discussão. Fiquei ali sentado no chão, com Atena no colo, por horas. Chegamos a ouvir o barulho mais uma vez. Uma noite tenebrosa.

Quando o sol começou a aparecer, isso depois de umas três horas trancados no quartinho, criamos coragem para ver o estrago. Andamos lentamente até a cozinha e, pasmem, o chão estava encharcado. Olhamos aquilo, espantados, e disparamos para o meu quarto. Tudo parecia em ordem no restante da casa. Nenhum objeto derrubado. Corremos para dentro dos cobertores, também com o medo irracional da minha mãe descobrir que havíamos passado a noite inteira acordados. Dormimos.


O mistério continuava sem explicação até a hora do almoço e, às vezes, penso que seria melhor se ele tivesse permanecido assim. Mas o que rolou foi o seguinte: o freezer estava descongelando. Acreditam nisso? Simplesmente isso: o freezer estava descongelando. As calotas de gelo se espatifavam no chão da cozinha enquanto eu e Alex tremíamos no quartinho escuro. Boa noite.  

domingo, 12 de julho de 2015

Correio Elegante

Estava lembrando de uma história da minha infância. Foi inevitável, já que ontem, na festa Junina do meu filho, acabei tendo contato com esta realidade há muito esquecida.

Durante a terceira série, eu era muito apaixonado por uma menina do colégio. Escrevia o nome dela nos meus cadernos e borrachas, a escolhia para o meu time de queimada e essas coisas todas. Como qualquer garoto de nove anos, não conseguia nem imaginar um meio de dar vazão àquele sentimento furioso. Era a conhecida paixão platônica.

A festa junina anual trazia um gosto diferente para aquele romance. Não sei explicar. Acho que era o ambiente descontraído, todos aqueles churros de doce de leite, barracas de bola na lata e prendas de baixo orçamento.

O que aconteceu foi que, em determinado momento da festa daquele ano, recebi um "correio elegante". Acredito que a maioria de vocês esteja familiarizado com este instrumento marcante de divulgação do amor juvenil. A sensação foi de explosões atômicas internas e esperanças não muito bem definidas, mas a reação, frente aos meus amigos, foi uma frase de desprezo: "isso é muito ridículo!".

Abri o bilhete anônimo que dizia "I love you" e senti um tremendo desequilíbrio nas pernas. Tratava-se de uma das poucas frases em inglês que não eram desconhecidas para ninguém. Meus amigos começaram a me sacanear imediatamente, cantando cantigas de namoro, enquanto eu tentava, alucinadamente, ocultar minha alegria e manter minha paixão mirim em segredo.

Fracassei nesta missão, mas acredito que todos eles já presumiam quem era a minha musa inspiradora bem antes daquele dia. Foram estes meus amigos que contribuíram na continuidade dos fatos, e levaram este episódio a seu ápice.

Em determinado momento da festa fui surpreendido pelos funcionários da “Cadeia”. Imagino que vocês também saibam como funciona essa brincadeira junina. Um claro incentivo à corrupção policial, que consiste em legitimar a prisão de inocentes em troca de dinheiro. Havia sido traído pelos meus próprios companheiros, que assistiram, com risadinhas, à minha injusta escolta até o pequeno cercado.

Porém, eles foram além. Passados dois minutos do cativeiro, eis que a própria rainha do meu rodeio é também levada presa. Não é necessário dizer que meu coração entrou em combustão espontânea. Então não vou dizer.

Nossos olhos se encontraram imediatamente e isso acabou me fazendo ferver ainda mais. Apesar de não ser tão esperto hoje em dia, posso dizer que não era assim tão burro na época. Sabia que não era prudente mencionar o bilhete, já que poderia ser de outra menina, mas não nego que me senti confiante para puxar uma conversa madura.

- Você também foi presa? – perguntei. Pobre coitado.

- Sim. – respondeu, gentilmente. Continuava a me olhar nos olhos. Isso me assustou um pouco.

- É, eu também fui. – continuei, senhor de mim e arauto do óbvio. – você sabe quem foi que te mandou?

- Não. – respondeu. Falava pouco, a menina.

Concordei com a cabeça. Aquele olhar dela continuava me fritando. Eu esperava algum sorriso, alguma demonstração de constrangimento (ou até de humanidade), mas não veio nada. Minhas mãos começaram a suar.  

- Tá legal a festa né? – perguntei. E foi aí que percebi que não conseguiria, nunca, chegar à frase realmente importante, que havia elaborado: “você quer comer um churros de doce de leite comigo, quando sairmos daqui?”. Era angustiante.

- Tá sim – respondeu. E ficamos assim, por mais alguns minutos. De vez em quando eu olhava para ela e só desviava o olhar depois que era surpreendido. Era tudo muito bem calculado.  Deixava ela perceber esse desvio de olhar, para deixar claro que havia algo suspeito ali. Um flerte primário, que desenvolvi por conta própria e carreguei para minha vida adulta, com o qual iniciei o contato com minha atual esposa.

Fui libertado ao final de 5 minutos, conforme acordado com o sistema de lei vigente, e não cheguei a encontrar com aquela doce jovem pelo restante da festa. Mas o pior vem agora.

No carro, voltando para casa, depois daquele dia cansativo e cheio de emoções, descobri, para minha completa e absoluta ruína, que o correio elegante tinha sido escrito, pago e enviado pela minha santa mãe. Uma brincadeirinha. Uma traquinagem sem maldade. Farrinha de mãe. Precisei de anos de terapia para voltar a acreditar no amor.



Ficção. Haha.